Edna Guimaraes Correa

A Fragilidade dos Sistemas


 

Morris West

Contra todos os testemunhos da história, ainda alimentamos a ilusão de que poderemos apoiar-nos indefinidamente nos sistemas que nós mesmos criamos. Ficamos escandalizados quando os sistemas se mostram frágeis demais para suportar o peso de nossos empreendimentos e de nossas esperanças.

Acreditamos ainda que o governo seja uma forma de magia que absolve os governados de responsabilidade pessoal e investe os governantes de uma espécie de divindade. Elevamos um homem forte ao governo sobre nós esquecidos de que ele é mortal e corruptível.

Elegemos assembléias para governar-nos e estranhamos que os seus componentes sejam tão ignorantes, egoístas e medíocres como nós.

Aceitamos leis cujo texto nunca lemos e reclamamos das injustiças que geram.

Pagamos à polícia e as milícias para que nos protejam. Tratamos de treiná-las nas técnicas de vigilância, repressão e tortura psicológicas. Só mais tarde é que vemos como é fácil nos tornar-mos vítimas delas.

Elaboramos complexos sistemas de serviço social para os doentes, os velhos e os inválidos. De repente, descobrimos quantos passam por entre as malhas da rede e como isso nos interessa pouco.

Fabricamos uma política monetária para manutenção de nossa moeda deficiente. Fechamos os olhos ao fato de que o dinheiro divorciado de serviços úteis e artigos tangíveis é papel sem valor, matemática alucinada na escrita dos banqueiros.

Devastamos os recursos da terra em nome do desenvolvimento industrial e do progresso econômico. Não vemos que os recursos diminuem enquanto metade do mundo vive a beira da fome.

Fazemos negociações de paz e vendemos as armas da guerra. Procuramos justificar-nos com a lei da oferta e da procura e com a necessidade de criar empregos.

A razão sai pela janela quando é preciso manter homens empregados mediante a morte de outros homens.

O computador nos liberta do ônus gêmeos da razão e da contabilidade.

Escreve-nos as biografias em símbolos secretos. Esses registros, aos quais não temos acesso, contra os quais não dispomos de recursos legais, determinam nosso crédito, nosso emprego e nossa posição moral.

Podem determinar o Dia do Juízo, do qual não há apelação possível.

Quando todos os nossos outros artifícios falham, procuramos refúgios neste ou naquele religioso. Aceitamos o ritual, a autoridade e a definição ou rendemos homenagem ao astrólogo e ao mago. Não temos coragem de enfrentar o fato simples da mortalidade ou o vasto mistério da continuidade cósmica.

Temos receio do grande incognoscível a quem chamamos Deus. Por isso fazemos deuses à nossa imagem e ficamos sem saber por que nos falham com tanta presteza. No fim, somos atacados da paralisia do desespero.

Somos tão pequenos, nossos sistemas são tão instáveis, o mundo é tão complexo que todos os nossos esforços parecem inúteis. Raspamos os últimos frutos para fazer uma refeição demente antes que a idade glacial nos envolva a todos.

Cada um de nós deve assumir plena responsabilidade pessoal na administração da sociedade. Nenhum de nós pode eximir-se dessa responsabilidade ou delegá-la à coletividade anônima.

Temos que criar ordem em nós mesmo e em nosso meio. Não devemos criar um tirano que a imponha por nós.

Devemos ser justos por nós mesmos - justiça pessoal, justiça social, antes que reclamemos justiça dos outros.

Temos de oferecer amor primeiro, ainda que o amor com que nos retribuam seja menor que o que esperamos. É esse o verdadeiro contrato social, sem o qual nenhum outro contato pode subsistir.

Devemos considerar-nos responsáveis, pessoalmente responsáveis por tudo o que é feito em nosso nome por nossos representantes eleitos ou pelos funcionários públicos pagos com o dinheiro dos nossos impostos.

Devemos protestar pessoalmente contra a legislação errada e o serviço infiel. Temos de reconhecer que uma doença no organismo público/político é uma doença em nossos organismos e que nos cabe o dever de cooperar pessoalmente na cura.

Se houver invasão dos direitos de outro, cada um de nós deve levantar-se para resistir á invasão.

Quanto maior é o caso, quanto mais complexa é a questão, mais importante é ouvir a voz humana isolada acima do clamor de debate partidário.

Cada um de nós tem o direito de propor a sua orientação nas assembléias, de reunir-se livremente, de decidir pelo voto da maioria. Cada um de nós tem o dever pessoal de proteger os direitos da minoria.

Cada um de nós tem uma obrigação da tolerância e compreensão, porque Deus usa uma face diferente para cada homem, porque todas as definições são insuficientes e queimar um homem em nome de uma fórmula é um ato bárbaro.

Cada um de nós deve respeitar a lei. Cada um de nós deve lutar para melhorar a lei, sabendo que a mesma é sempre menos justa, que é tanto uma arma quanto um escudo, que as suas injustiças podem impelir os homens á desordem e à violência. Não há código completo, não há legislação que não possa ser contestada, não deve haver regulamentos que possam desprezar o seu objetivo fundamental: dispensar justiça numa comunidade de cidadãos livres e capazes de se dirigirem.

Não é um sistema que nos salvará.

Somos nós mesmos que nos salvaremos, um por um, um a um, cada um a todos e todos a cada um.